sábado, 22 de dezembro de 2012

História



História:
A espinha dorsal, a coluna vertebral. O cerne. O tutano do osso. O princípio e o meio, sem fim. A hecatombe temporal. O limbo das memórias. O que o divino deixou que se tornasse humano e se escrevesse por essas mãos.
O sangue que te corre nas veias, mas que irriga mais do que um organismo. A osmose generalizada do passado. A corda que segura a humanidade nas suas teias intermináveis de palavras, imagens e estórias históricas. A tua história, a minha história, a nossa história. O campo irrevogável, incontestável e imutável. O que está enterrado em ti e cravado em todas as tuas células. O fantasma que respira o mesmo ar que tu. A sombra que te acompanha. Tu em todos os pretéritos. Aquele recanto na tua massa cinzenta em que mergulhas sem que a pele se molhe, mas no qual te podes afundar se excederes a dose recomendada. Os teus alicerces. Aquilo em que te deves basear, mas não limitar. O ponto de partida. A matéria que te constrói, mas também a que te retalha. A sentença que podes dar a ti mesmo, quando te descuidas e te deixas picar por um veneno devorador de tempos, que te vai embalando numa catarse de pretéritos.
História: o tecido gasto da memória que se esbraceja com a realidade. O contraste. A plataforma. O recado. O aviso. O que fica para trás. Onde ficou. Onde está. Onde se imortalizou. 
Porque a mão continua a escrever.

2012/09/28

(Foto: Phillip Schumacher)

sábado, 18 de agosto de 2012

Acertos



O que dói na verdade é a forma como ela se entranha na carne. Ela percorre as veias e vai largando em doses abruptas o seu veneno, contaminando um corpo, outrora dito saudável. Num segundo não existe, no outro impera. Num segundo é plebeia, noutro é rainha. Mas o que dói mesmo na verdade é ela não ser mentira. É ela não ser generosa, piedosa, sensível e nos invadir sem escrúpulos. A verdade é crua, abrupta e irrevogável. Chega e apodera-se, sem licenças.

O doloroso não é dormir abraçada a falácias, a contradições, a invenções criadas pelo cérebro. Não. O que dói é precisarmos delas como se de morfina se tratasse. O que dói é sentir que preferimos a negar o incontestável e permanecer estáticos nos fios do tempo só para proteger uma mentira. O que dói é acreditar, para que, depois, tudo se transforme em pó, sem direito a renascer das cinzas. Porque a verdade é uma sentença.

Custa ver pela primeira vez. Olhar. Incidir. Perscrutar. Sermos invadidos pelo fel da desilusão e conservarmos o seu travo na boca por tempo indeterminado. E nesse funeral da mentira, de nada servem vocábulos frouxos, tão vulneráveis e culpados como essa matéria em decomposição. Não há nada mais a fazer. É o não significar mais nada. O vazio. O vácuo emocional.

A verdade obriga a desenlaçar, desterrar pedaços que perderam significado. Obriga-nos a remodelar o mundo, a criar novos ângulos de visão e cimentar alicerces. Obriga-nos a desembargar a asfixia e deixar o ar retomar o seu curso até aos pulmões. A mentira embala-nos o sono leve ao ritmo suave e inaudível das suas canções, mas o despertar é muito mais violento e abrupto. É ceifar um novo mundo. É desalinhar o presente, desnortear o futuro.

Sabes? O que dói na mentira é que ela foi uma criação minha e não tua, porque ela saiu de dentro de mim e me envolveu num abraço profundo. Aprisionou os meus sentidos e fez-me ver tudo como eu queria que fosse. E eu dependia dela. Eu gostava dela. Eu era feliz com ela. Vivia inebriada pela sua doçura, pelo seu encanto, pelos seus contornos. Mas o meu cruzamento com a verdade desmoronou todas essas construções irrealistas e transportou-me para a realidade.

A verdade é independente, factual. Ela existe e pronto. Não tens desvios, é uma linha recta. Não se deleita nas cores, é preta e branca. É concreta, palpável, consistente, inabalável, indestrutível. Não precisa de predicados, só precisa de si própria. Para quê ser mais do que já é?

A verdade é fascinante. Acho que devias cruzar-te com ela um dia.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Selva

"Na vida só sobrevivem os fortes.
Se és fraco terás de deixar de o ser!"

Autor desconhecido

Continuo a vê-lo. Por mais sombras que atravessem a atmosfera densa, continuo a vê-lo. Nem que ao fundo a tempestade se faça anunciar na sua altivez soberana, ele permanece estático, imóvel, invariavelmente protegido de todas as intempéries que possam surgir até eu o encontrar.
O meu grito atravessa a selva. O meu sangue derrama-se no chão inóspito e vai formando um rasto vermelho cristalino. Os leões aproximam-se. Cercam-me. Abafam-me nos seus rugidos majestosos. Um som rude, seco, que encerra em si o domínio da força e do poder. Vejo os olhos sedentos esperarem o meu vacilo, o meu próximo movimento para me eliminarem. Calculam-me os passos. Preparam a investida. O medo, esse inquilino indesejável, começa a dar de si. Procura um lugar para, levemente, tomar posse de todo um sistema e se personificar em mim. Por mais que a força me abandone, por mais que eu pense que é o fim, eu continuo a vê-lo no topo da montanha. É nele que penso a cada batimento cardíaco oscilante, a cada sorvo de ar que respiro. É nele que me foco para não me desencontrar me perder de mim mesma. É nele que penso neste momento onde tudo parece estar determinado e irremediavelmente terminado.
De súbito, a vida começa a pulsar-me nas veias e a inundar-me de uma vitalidade esquecida, remota dos tantos passados que fui e em que me tornei. Aqui estou eu, fusão de pretéritos, catapultada para o sítio mais hostil e irrespirável, onde o tempo urge e o ar ganha uma consistência desesperada.
Lembro-me do primeiro passo que dei num troço invisível e sem rota calculável. Uma viagem sem regresso. Uma caminhada no inesperado. Um cruzamento de hipóteses. Estou aqui. Estou aqui perante uma plateia que anseia o meu fraquejo, a minha queda, o meu infortúnio. O público que me cerca teme concorrência e impõe-se pela força, porque não reúne outro apetrecho viável. Apetece-me chorar, desistir, voltar. Apetece-me o impossível. Apetece-me esquecer toda a história que construí e apagar todas as memórias e desconstruir esta realidade. Mas tu permaneces lá, imóvel, estático, inabalável, inquebrável. É inacreditável como não desististe de mim, mesmo quando eu me questiono se tenho forças para te tocar. É inacreditável como te tornas cada vez mais sólido e urgente a cada passo dado e te tornas crucial para o meu enigma.
Os leões cercam-me, atiçam-me mas a sua força é irremediavelmente fraca quando comparada à força dos meus ideais. Posso perder a batalha, posso sangrar, mas não desisto.
O meu olhar permanece pousado tranquilamente na meta.
No meio do nada prometi alcançar-te. Espera-me. Estou a caminho.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Castelo

A complexidade humana ultrapassa-me, abisma-me e fascina-me.

Há quem viva em castelos, aparente ser o que não é e viva entusiasmado com a ideia de ser um sofredor, como se essa fosse uma verdadeira missão de vida. No entanto, essa característica pode não ter nascido com a pessoa, tendo sido preciso um certo nível de esforço para que pareça fatídico, premonitório e natural. Umas das formas mais comuns é traçar um caminho linear, de acordo com as regras que a sociedade entende serem as melhores, fazer uma lavagem cerebral às próprias opiniões e mergulhar nos inúmeros conflitos interiores e alheios que lhe surgirem ao longo da vida.  Estão previstos alguns efeitos secundários, mas após a habituação tudo começa a fazer sentido.

Lamentos. Infortúnios. Solidão.

Muitas pessoas almejam isso e, lentamente, vão conseguindo. Rendem-se ao isolamento porque se sentem incompreendidas. Vivem por entre os muros do seu belo castelo, impecavelmente mantido ao longo dos anos, para bem de todas as aparências, mas caminham sozinhos por entre quatro paredes diariamente. Mostram a sua apática simpatia, a sua débil generosidade e sua altivez perante os outros, porque, afinal, estamos a falar de seres superiores.

Após um histórico clássico de vida, vai criando conflitos e afastando todos de si. (Esta tarefa crucial requer engenho e imaginação. Para os mais avançados é obrigatório pensar em formas de fazer os outros se sentirem culpados.)

É aqui que começa um vibrante jogo de emoções onde sangue, suor e lágrimas são permitidos. É preciso auscultar o eco que o conflituoso tem em cada pessoa. Tem de medir o seu grau de influência para poder prender a sua vítima e começar o tão aguardado processo de chantagem emocional. Há os que resistem e saem ilesos do campo de batalha e os que se deixam dominar, mas também estes acabam por se libertar.

Aos poucos, o conflituoso vai desgastando os laços que tinha, porque ninguém têm mais paciência para o aturar. No entanto, isso é apenas mais uma razão para inclinar a cabeça, franzir a testa e lamuriar-se como só ele sabe. (É também importante acertar na pessoa que o vai ouvir para conferir mais credibilidade ao discurso e ao consequente passa a palavra). É nestes momentos que a sua vida atinge o auge, o pico de adrenalina. É aqui que pode pegar em diversas histórias que leu em livros, misturá-las com algumas verdades da sua cabeça e mexer cuidadosamente até formar uma consistente mentira. É esta receita que o vai alimentar e nutrir a sua alma cadavérica.

Após anos e anos nesta redoma e clausura, torna-se mestre da manipulação. Consegue criar, esporadicamente e facilmente, alguns atritos com terceiros, afastar algumas pessoas e revolucionar conceitos fundamentais para o ser humano.

Até que fica completamente sozinho, porque não existe mais ninguém que tenha compaixão, interesse, paciência ou dever moral para estar com ele. 

E não existe outro tipo de final possível.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Emersão

Estávamos reunidos à volta da mesa vermelha numa espera que parecia interminável. À nossa volta o ar mostrava-se pesado, quase que irrespirável.
Entre goles de café, íamos esperando o que nos tinhas para dizer. Tinhas estampado no rosto a urgência de falar, o que nunca tinha visto em ti. Desenhavas um grito mudo que ecoava até às nossas mentes. Essa mensagem não verbal enregelou-me o coração, como se absorvesse as palavras invisíveis que lançavas. Senti um sufoco na garganta, mas esse sufoco era por saber o quanto este momento significava para ti.
Hesitaste.
Voltaste a hesitar.
Antes de verbalizares, sequer, aquilo que ansiavas por nos dizer, a minha cabeça formou as palavras que te iam sair pela boca, quase como se fossem projectadas por mim, que vociferas numa perfeita sintonia.
Falaste.
Lançaste as palavras de uma forma pausada, deliberada e consciente. Mais do que as palavras, o tom de voz cunhou os vocábulos , conferindo-lhe um carácter grave.
Desviei o olhar por segundos e voltei a encarar-te, só que desta vez, vi-te como nunca te tinha visto. Encostaste-te à cadeira, com alívio, após teres expulsado do mais profundo de ti, uma verdade prisioneira. A partir dali, tudo seria diferente. Tudo era uma nova etapa, uma nova porta que se abria e para a qual não sabias com que contar, mas o que mais me impressionou foi a tua determinação inabalável.
Faltaram-me as palavras. Toda a gente falou, mas eu remeti-me ao silêncio, provavelmente no único momento em que devia fazer com que as palavras deslizassem pela boca. Mas elas morreram na fonte. Queria dizer-te tanto, mas não consegui estabelecer uma sequência mental com tudo o que tinha para exprimir.
Cá dentro os pensamentos deambulavam sobre o teu eixo de coragem e estabeleci uma breve viagem interior. Tentei pôr-me na tua pele, entrar nas tuas memórias e mudar a perspectiva. Passar a ser o sujeito activo, passar a ser tu.
Um segredo corrói, deixa mazelas. Incapacita. Desmorona o organismo como um baralho de cartas, mas tu estavas a dar o peito às balas. Nem por um segundo vi fraqueza nos teus olhos.
Não reclamavas a nossa compreensão ou aceitação. Reclamavas antes a tua própria aceitação. Reclamavas, legitimamente, a verdade sobre ti. Apenas.
O mundo, na sua condição, não conhecia os seus subordinados, os mundos dentro dos mundos, os mundos dentro de ti. E assim se dá uma metamorfose da realidade, que se avizinha aos olhos cada vez mais nitidamente. E assim surge uma mudança de paradigmas, novas leis.
Nem toda a gente consegue falar a linguagem da verdade e a pior mentira é aquela que contam a elas próprias, chegando ao ponto em que não sabem mais fazer a destrinça entre os dois conceitos, sendo projectadas para uma espiral que as enclausura por entre muros espessos, dos quais é quase impossível libertar-se.
Enredam-se na própria teia que constroem, que falseiam.
Passam pela vida como quem passa pelas brasas. Percorrem os mesmos trilhos, as mesmas artérias congestionadas, indo parar, inevitavelmente, aos lugares comuns.
Criam cancros sociais. Tornam-se fraudes. Fraudes que cambaleiam pelas ruas sem vida, vivendo sempre na desgraça. Vivem na  negação que criaram deles próprios.  São autómatos, verdadeiras máquinas programadas, cheias de funções estímulo-resposta. Vivem pela metade. Vivem pelo suficiente. Não ambicionam ser mais do que são. Diria mesmo, não têm coragem para ser mais. Submetem-se ao copo meio vazio, em vez de verem o copo meio cheio. Submetem-se à fatalidade, ao infortúnio, às desgraças.
Desvalorizam todos s pequenos gestos, todos os pequenos momentos, passando pela vida como uma sombra, como um resquício de vida. Não correm riscos. Não se afirmam. Não fazem a diferença. Não conseguem chegar verdadeiramente às outras pessoas, porque se prendem à futilidade.
Tu não quiseste entrar para esta estatística, para esta amostra de uma sociedade empobrecida, empoeirada de estereótipos, preconceitos, mentiras. A sociedade que cria um guião moral que toda a gente segue, como se a sociedade fosse a mãe do nosso próprio destino.
Quiseste a verdade numa altura em que ela está a cair em desuso. 



2011/07/16